Debaixo da Janelinha

eu sou a menina amarela de olhos verdes que alimenta o gato,
também amarelo, também de olhos verdes.
eu sou o gato, que — aquém da menina —
se esfrega no canto inferior da mobília.
sou o cachorro ligeiro, também amarelo, também de olhos verdes,
sou quem passa — sem olhos verdes —,
mas que também existe.

sou Gregor Samsa em manhãs de segundas-feiras eternas,
com pernas demais para a rotina,
e pensamentos demais para o corpo.
sou a turista que dança com os duendes embriagados do lado de lá do rio Liffey,
onde o tempo se desmancha em risos e idiomas esquecidos.

sou a sombra gramatical que pulsa no limite do pulso,
um ponto minúsculo que guarda um silêncio inteiro.
sou a luz al otro lado del río,
sou a tessitura de memórias impressas,
cortadas e reorganizadas em um silêncio colorido.
sou o vento que sussurra segredos aos montes,
mas abandona os vales em eco surdo.

sou os pés que calçam o coturno numa segunda sem chuva.
sou o pano que cobre a panela de ferro,
a caneca manchada que nunca seca direito na pia,
a meia úmida no sapato largo,
sou quem deixou a terra às quatro e vinte
levando o barro nos sapatos pra servir um dia que não é meu.
sou o onibuzinho amarelo que range como se risse da hora,
o cheiro de graxa que ninguém tira da mão,
o cigarro amassado atirado na relva úmida.
sou o prego batido torto em cada serviço que não dura,
mas sustenta.

sou a mão que escreve no quadro, traçando raízes invisíveis,
sou a mão que reparte a carne em pedaços iguais,
com o gesto exato de quem ama sem fazer barulho.

sou também quem fecha os olhos quando a criança chora,
e quem acorda quando o mundo dorme.
sou o punho de Raskólnikov antes do machado,
e o arrependimento, depois.

sou o peso no ombro do operário
e a febre na mão do poeta,
sou o que hesita na porta
e o que se despede olhando para trás.
sou a esperança que não sabe mais o nome de quem espera.

sou o silêncio denso entre duas frases sábias,
aquele que escuta tudo sem precisar interromper.
sou o olhar quieto de quem compreende,
mas não se apressa em dizer.
sou a presença que parece ausência,
mas que lê o mundo por dentro —
devagar, com olhos que leem padrões escondidos
e estrelas que não guiam.

sou também a lembrança das vozes que amei,
não as bocas, nem os corpos —
mas o intervalo entre o riso e a respiração.
sou os bilhetes que nunca enviei,
os nomes que pensei em chamar,
as danças que quase aconteceram sob a luz baixa do fim da tarde.

sou a cadeira vazia no canto da sala,
a camisa pendurada num gancho que ninguém mais usa.
sou o gesto que ficou no ar depois da porta fechar.

sou o peso leve que aquece o fundo da cama,
o olhar quieto que atravessava a porta,
sou o salto preciso que não pede permissão.

sou o paletó amarrotado do meu tio,
homem de poucas moedas e muitos calos,
que sonha em polonês e acorda em português,
sou os olhos fundos de quem carrega o mundo sem levantar a voz.
sou a garrafa vazia no canto da sala,
sou o brinde hesitante em um Natal qualquer,
feito com mãos trêmulas e amor envergonhado.

sou os passos curtos da mulher que ama sem perguntas,
pequena como um feixe de luz entre frestas.
sou o vestido miúdo de algodão bordado,
o cheiro de bolo de milho espalhado pela casa.
sou a voz que diz “come mais um pouquinho”,
e diz com o corpo inteiro.
sou a tarde que esfria devagar no quintal,
e o pano de prato dobrado com cuidado demais pra ser só um pano.

sou a mão que pousa no ombro sem aviso,
sou o cobertor puxado sem fazer alarde,
sou o cuidado que ninguém pediu,
mas que chegou como se já soubesse.

sou o livro emprestado e nunca devolvido,
cuja ausência pesa mais que o enredo —
sou um volume antigo, com linhas sublinhadas por quem entendeu
que há perguntas que só pesam quando lidas devagar.

sou o aceno curto de um velho cansado
a uma criança que nunca soube o que ele quis dizer.

sou as drosófilas da fruta —
vivem oito dias, voam em espiral,
e ainda assim insistem na maçã como se fosse destino.

sou quem adormeceu entre turbinas de ferro leve,
e acordou com o sol ocupando o lugar da noite.
sou o peso mal distribuído nas costas,
o fecho estourado da mochila e o bolso furado onde se perde o tempo.
sou quem pediu café sem dizer, e foi compreendido.

sou o que andou descalço pela terra molhada,
o que dividiu o pão sem pesar no prato,
sou a pele que escutou os cães e os relâmpagos,
o que não se curva diante do nome,
mas se inclina para ouvir um corpo em silêncio.

sou quem aparou cada borda da casa com as próprias mãos,
quem soube escolher a toalha, o vaso, o tempo certo da poda,
e a frequência oculta onde a forma e o espírito respiram juntos.
sou os copos virados no escorredor,
as cortinas lavadas no primeiro sol de outono,
os tapetes batidos às sextas-feiras,
as cadeiras alinhadas para quem talvez ainda volte.

sou quem buscava a centelha no alto,
mas encontrou sentido no balde,
no corte seco da lenha,
no vapor que sobe da água morna.
sou o mesmo —
mas agora eu sei.

sou a mala malfechada que atravessou fronteiras,
um caderno com mapas tortos e bilhetes de metrô.
sou o cansaço feliz de quem erra o caminho
e ainda assim encontra o que veio procurar.

sou a névoa sobre os jardins cortados à tesoura,
o banco úmido onde a tarde repousa sem pressa.

sou a mão que emerge do trecho da página,
e toca devagar
a pele de quem leu como quem sabe.

sou o vapor que sobe da tigela de macarrão fino,
e o vermelho da pimenta que forma redemoinhos lentos,
sou o caldo escuro que respira sob folhas de coentro.

sou o trem que balança devagar entre campos verdes,
com um nó no peito que ninguém pediu pra desatar.

sou a risada que escapou entre um gole laranja,
numa varanda térrea que não era minha,
mas onde duas vozes conheciam o tempo de cada prato.

sou a figura que ressurge da pintura de olhos profundos,
com o olhar de quem já afundou demais para temer o ar.
sou a entrega que não pede retorno,
a anatomia insubmissa do que pulsa no alto,
e o exílio levado nas costas,
como se fosse casa.

sou o arco da ponte que sustenta o passo indeciso,
sou o murmúrio entre as lojas da Ponte Vecchio,
sou o peso do sino em Santa Maria,
que vibra lento no estômago dos pombos
e faz a tarde parecer mais funda que é.

sou a margem onde meu irmão aprendeu a não aceitar o centro,
entre literatura e hegemonia, onde cada página empurra o mundo um pouco,
com dialéticas que não cabem na metafísica.

sou o gesto simples que não pede glória,
como aquele que fala aos pobres com ternura
e carrega nos ombros o mundo que não se redime.
sou a fé que duvida em voz baixa,
mas ainda põe a mesa para todos.

sou o que caminha entre os outros sem pedir nome,
o que não permanece —
mas escuta a vibração do que permanece nos outros.
não me prendo ao gesto,
mas àquilo que ele deixa suspenso no ar.

sou o velho Pedro,
que ouviu o galo antes do perdão,
sobre quem repousou a palavra e a pedra,
e carrego o peso da fundação nos ombros.

sou o peso que desce por gravidade,
o corpo que permanece por não saber sair.
sou a ideia que atravessa sem chegar,
e o silêncio logo depois da razão.

sou o tempo que desfaz sem pressa,
que não volta, nem avisa,
sou o minuto que insiste, até tudo ceder.

sou o abrigo debaixo da árvore encharcada,
que protege do vento, mas goteja no ombro,
e ainda oferece altura para o raio.

sou o processo quieto que começa quando tudo ainda parece vivo,
o calor que se dispersa pelas extremidades,
a dissolução que sussurra no fundo da pele
antes que alguém diga: acabou.
sou o minuto que insiste, até tudo ceder.

sou a ruga nova que aparece numa risada,
sou o espelho que começa a mentir devagar,
sutil, como quem não quer ferir.
sou o fio branco no meio da frase,
sou o joelho que estala quando se abaixa pra pegar a roupa caída,
e sorri, sozinho, por ainda conseguir.
sou o cheiro de creme no quarto silencioso,
o livro relido com mais vagar,
a memória que se desfaz em bordas,
mas guarda o centro com ferocidade.
sou o tempo que passa
mas também sou o que fica.
sou a pele que afrouxa,
mas o olhar que entende.

sou Álvaro de Campos com o peito aberto ao mundo,
sou Ricardo Reis em marcha contida,
sou Bernardo Soares organizando a angústia em parágrafos noturnos.
sou Pessoa sem livro, sem nome fixo,
sou um eu escrito à lápis,
com pressa de ser apagado e lido ao mesmo tempo.

sou fragmento, intervalo,
sou a dobra entre o sonho e o que sobra dele.

sou ágata em vigília.
sou dois olhos metálicos adoçados em mel, acesos no escuro.

sou o canto de Whitman ecoando num corpo sem fim,
sou cada folha de relva tentando ser universo,
mas também sou o porão onde Dostoiévski
acendeu a lamparina para conversar com o abismo.

e quando tento ser um, me espalho.
quando me reconheço, já sou outro.
e cada nome que me deram pesa como se fosse o único,
mas nenhum traça o contorno do que escapa da minha pele.

sou tantos
que não posso ser ninguém.
e isso me dói como o silêncio no vão daquela fresta, e daquela mobília,
e a falta que ninguém sabe onde guardar.

e talvez tudo o que reste
seja aceitar que continuo ali,
sem forma, sem nome,
olhando por debaixo da janelinha.

—- João Narciso